Eu, Aldo Dinucci, sou doutor em filosofia clássica, pesquisador com 25 anos de experiência, com doutorado pela PUC/RJ, treinado especificamente para traduzir e interpretar textos clássicos de nossa herança cultural greco-latina. Essa é uma profissão tradicional e comum no mundo ocidental, que dispõe de inúmeras associações pelo mundo, como, por exemplo, a Society of Classical Studies, associação norte‑americana de Estudos Clássicos fundada em 1869.
Não há nada de extraordinário nessa atividade, além de sua dificuldade, pois é preciso dominar as línguas antigas e estudar o contexto histórico para realizar as reconstruções, contextualizações, exegeses e traduções.
Do estoicismo original, quer dizer, dos textos originais dos estoicos antigos, na verdade muito nos chegou. Por exemplo, a edição italiana dos fragmentos dos estoicos antigos tem 1666 páginas (Tutti i frammenti degli stoici antichi, Editora Bompiani, 2002). E a edição italiana dos textos dos estoicos do período imperial romano tem 2623 páginas (Stoici romani minori. Testo greco e latino a fronte, Editora Bompiani, 2008). Em relação à lógica estoica, particularmente, tema do qual sou especialista, há uma coletânea alemã de fragmentos sobre a lógica estoica, em vários volumes, com 1917 páginas ao todo (Karlheinz Hulser: Die Fragmente Zur Dialektik der Stoiker. Frommann-Holzboog; Multilingual Edition, 1988).
Então é equivocado dizer que nos chegaram pouco dos estoicos antigos. Na verdade, nós, que estudamos o estoicismo antigo, costumamos dizer que precisaríamos de pelo menos mais 500 anos de vida para ler tudo, sem mencionar os textos dos especialistas, que já enchem bibliotecas.
Cabe ao estudioso clássico traduzir esses textos da língua original e interpretá-los, buscando seu sentido original. Eu traduzi alguns desses textos do grego e do latim, como, por exemplo, o livro 1 das Diatribes de Epicteto, publicado pela Imprensa de Coimbra, entre outros, que pode ser baixado gratuitamente pelo link.
Mas alguém poderia perguntar:
- É possível conhecer com cem por cento de certeza o sentido original dos textos estoicos antigos?
Resposta: Não, pois tal grau de certeza não pertence a área alguma do conhecimento humano.
- É possível conhecer paulatinamente o sentido original dos textos estoicos?
Resposta: Sim, através de métodos exegéticos científicos podemos conhecer paulatinamente mais acerca desses textos e das ideias neles contidas e seus autores. Não fosse assim, se não se pudesse em nenhuma medida conhecer o sentido original, não haveria sentido em lê-los, seja no original, seja traduzidos. Bastaria tentar adivinhar seu conteúdo olhando para as capas dos livros ou imaginando-os, e não precisaríamos guardar livros antigos. Para que bibliotecas com milhões de livros antigos se não podemos compreendê-los em grau algum
Assim, a carreira de estudos clássicos nos dá a oportunidade de preservar e tornar vivas nossas heranças culturais através da exegese de textos antigos. Sem isso, nos tornamos uma sociedade sem memória e desprezamos o conhecimento que nossos antepassados produziram.
Ultimamente, há no mundo algumas iniciativas de criação de centros de estudo de estoicismo que tentam em alguma medida reproduzir a dinâmica das escolas helenísticas de filosofia. E alguém aqui poderia perguntar: trata-se de usar togas em salas repletas de colunas e estátuas antigas? A resposta a isso, é claro, é negativa. Não se trata de um curso de teatro (o que, aliás, não deixa de ser boa ideia), mas de tomar os conteúdos lecionados na Antiguidade e ensiná-los com as devidas adaptações ao nosso tempo, como, por exemplo, com generosas porções de espírito científico, como o de Carl Sagan (de fato, os estoicos eram fundamentalmente cientistas). E por que isso? Porque muitos (entre os quais nos incluímos) julgam que o Estoicismo tem coisas boas a oferecer aos nossos dias.
E pode-se indagar ainda: é possível alguém se chamar de estoico nos dias de hoje? Ora, por que não? Como observou João Leite Ribeiro, não há cristãos, muçulmanos, budistas que seguem doutrinas de milhares de anos atrás? Mas, alguém pode insistir, seguirão eles a essência dessas doutrinas em sua originalidade? Seguirão na medida em que puderem e na medida em que quiserem.
E poder-se-ia ainda afirmar: seria ridículo criar um centro de estudos de estoicismo! Mas por quê? Não há tantas religiões e gnoses, tantos cultos de todo tipo espalhados mundo afora? Por qual razão um um centro de estudos de estoicismo seria ridículo e essas religiões e cultos não? É claro, o ridículo está no olhar de quem crê que algo é ridículo. E o riso, como se sabe, cumpre também a função de censurar aquilo que não se quer que prospere.
Por fim, não será a busca filosófica solitária? Será se você assim o quiser. Como bem destacou o filósofo alemão Sloterdijk em sua famosa conferência intitulada “Regras para o Parque Humano, uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo” ( SLOTERDIJK, Regras para o Parque Humano. Uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad. José Oscar de A. Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000), era característico das escolas helenísticas a formação de comunidades de amigos que se reuniam para refletir e trocar ideias filosóficas. Para Sloterdijk, o advento do humanismo, combinado, na Grécia, com a invenção da filosofia, criou em torno de si uma comunidade de amigos à distância no tempo e no espaço. Por exemplo: em torno dos escritos de Epicuro instituiu-se uma comunidade de filósofos (os epicuristas) que se dedicou a praticar as concepções e os valores epicuristas, preservar tais obras e difundi-las. E o mesmo se deu em torno de muitos filósofos, como Sócrates, Platão, Aristóteles, Zenão de Cítio. Assim, a difusão e a preservação da cultura humanista se fundavam essencialmente na preservação e transmissão da palavra escrita através de uma comunidade baseada na amizade.
Entretanto, os meios pós-modernos de comunicação (rádio, televisão, telefone, internet) contribuíram para colocar em segundo plano a escrita como meio de difusão cultural, razão pela qual Sloterdijk conclui que a concepção humanista viu-se por terra, desempenhando agora um papel menor e sendo substituída por uma concepção de controle social que busca adestrar os humanos seja pelos meios pós-modernos de comunicação seja por uma intervenção científica que visa em última análise o controle genético do ser humano.
Assim, a instituição de centros de estudos de estoicismo (como também de outras filosofias irmanadas) contribuiria para restaurar e implementar o humanismo e o gosto pela ciência. Longe de ser algo ridículo e impraticável, é algo não só viável (de fato, já há iniciativas como estas em curso mundo afora, como, por exemplo, o College of Stoic Philosophers) como também desejável dentro do panorama cultural decadente em que vivemos.
Subscrevem, in totum,
Vanessa Cordeiro (advogada), João Leite Ribeiro (escritor), Joelson Nascimento (doutorando em filosofia) e Marcus Resende (doutorando em filosofia).
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