Contemplação e entendimento entre os estoicos (e os não estoicos)

Arquimedes de Siracusa.

Meu amigo Aldo Dinucci escreveu recentemente sobre a importância da teoria e da prática no âmbito da filosofia estoica. Ele me pediu que complementasse as observações que fez no seu texto com alguma contribuição minha.

Fundamentalmente, concordo com o que ele diz no texto. O que apresentarei a seguir são apenas algumas nuances — subjetivas, talvez.

Nosso vocábulo “teoria” vem do grego theōría (θεωρία), que inicialmente designava a ação de ver, observar, examinar com os olhos. Esse substantivo ligava-se ao verbo theōréō (θεωρέω), particularmente usado quando se queria indicar a posição daquele que assistia aos jogos atléticos ou a uma representação teatral. Com efeito, um espectador era um theōrós (θεωρός), nome que se dava também àquele que viajava em missão diplomática ou com o fim de consultar um oráculo — um observador, pois. Theṓrēma (θεώρημα), em sua primeira acepção, significava “espetáculo”, “evento que enchia os olhos”.

Não há consenso entre os filólogos acerca do sentido da primeira parte — ou radical — que compõe esses termos: pode ser tanto *thea- (ligado a théa, θέα, “visão” ou “espetáculo”) como *theo- (na linha de theós, θεός, “deus”). A segunda parte, menos misteriosa, baseia-se provavelmente no verbo horáō (ὁράω): “olhar”, “enxergar” (informações colhidas em Chantraine). 

Assim, um theōrós poderia ser alguém que observa um objeto com zelo religioso ou como se estivesse diante de um espetáculo. Seja como for, a ideia de ver com atenção, observar com cautela, parece bem delineada em ambas as hipóteses.

Da acepção inicial ligada ao sentido da visão, passa-se ao intelecto. Sobretudo nos filósofos, o verbo theōréō terá o significado de “contemplar pela inteligência”, “julgar uma coisa a partir de outra” — e theōría, por conseguinte, englobará noções como as de “contemplação da mente, meditação, estudo” (uso as definições de Bailly).

Os atos de ver com os olhos e de discernir com a mente sempre estiveram relacionados. Provavelmente isso se deve à rapidez com que nós, humanos, somos capazes de compreender uma coisa depois de vê-la. Muitas coisas só se nos fazem claras depois que as enxergamos com nossos próprios olhos. Algo que não se vê pode ser estudado e mesmo descrito, mas é muito diferente de quando o temos à vista. 

Cristóvão Colombo podia imaginar, com base nos relatos que lia, como eram os mares que conduziriam sua pequena esquadra às Índias, mas no meio do caminho inesperadamente encontrou o Caribe e vislumbrou a América, avistando coisas que nenhum outro europeu antes pudera ver. Com o correr dos séculos, chegou-se, depois, à constatação de que a  extensão dos oceanos supera a da terra firme, mas a expressão “planeta azul”, atribuída a Gagárin, só passou a fazer sentido após as primeiras fotos do espaço serem divulgadas. E a astrofísica, surgida há não muitas décadas, ganhou impulso considerável a partir dos registros visuais das diversas sondas, satélites e telescópios, que nos evidenciaram quão antigo, imenso e belo é o cosmos.

Insisto na relação ver-compreender porque ela me parece crucial também em se tratando de uma filosofia como a dos estoicos. Ao que tudo indica, na origem, uma palavra como theōría não era entendida como mera especulação, sem lastro naquilo que os sentidos — por precários que fossem — podiam verificar. “Contemplação” e “entendimento” eram ações aparentadas, correlatas. Estão separadas em nossa língua, mas não no grego antigo, não em muitas das visões filosóficas da Antiguidade.

Porque theōréō expressava tanto o observar com os olhos quanto o observar com a mente, a contiguidade entre ambos os atos parece ser inextricável para os gregos que se mantiveram fiéis ao primeiro significado de palavras desse campo semântico. Mesmo com a evolução da língua através dos séculos, um uso consciencioso de termos assim — como é o caso da filosofia, que pressupõe reflexão sobre as palavras — sempre revelaria tal contiguidade.

Ao discutir a diferença que há entre os animais irracionais e os seres humanos, Epicteto, que discernia a presença de uma divindade organizadora da natureza, diz-nos o seguinte:

Deus introduziu o ser humano como seu espectador [theatḗs, θεατής] e de suas obras. E não só como espectador, mas também como exegeta de suas obras. É, por isso, vergonhoso para o ser humano começar e terminar como os irracionais: é preciso antes aí começar e terminar lá onde a natureza, em nosso caso, determinou. E ela o determinou para a contemplação [theōría, θεωρία], para a compreensão [parakoloúthēsis, παρακολούθησις] e para um modo de vida em harmonia com a natureza. Assim, cuidai para não virdes a morrer sem serdes espectadores dessas coisas.

  • Diatribes, I, 6: 19-22; trad. A. Dinucci

As Diatribes de Epicteto, recolhidas por seu aluno Flávio Arriano, baseiam-se em trechos de aulas e diálogos públicos de um professor estoico, que fundara uma escola de filosofia em Nicópolis. Pelo que se depreende, havia uma parte mais “teórica” (no sentido contemporâneo) do ensino, centrada na leitura e discussão dos textos de lógica e epistemologia de Zenão e Crisipo, e outra mais “descontraída” ou “prática” do magistério epictetiano, que Arriano procurou registrar.

Em trechos como esse, não estamos lidando com o que há de mais estritamente cerebral/especulativo no estoicismo. Ainda assim, Epicteto jamais considerou que o estudo das partes mais “duras” da filosofia fosse inútil ou desvinculado da vida prática. Com efeito, um dos fundamentos da filosofia estoica é que o pensamento correto acerca da realidade é capaz de produzir um modo de vida também correto —  e “correto”, aqui, no sentido de estar de acordo com a natureza, criando as condições de uma existência feliz e sem sofrimento.