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O estoicismo e a cura das paixões

(Imagem: Jean-Honoré Fragonard, 1777)

O estoicismo e a cura das paixões

Para os estoicos, as paixões podem ser boas ou más

Aldo Dinucci Escrito por Aldo Dinucci
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O Estoicismo é uma escola filosófica fundada por Zenão de Cítio, um africano fenício, que viveu entre os séculos IV e III antes da era comum. 

A filosofia estoica pode ser resumida em três grandes buscas: a busca pela paz interior, a busca pela ação ética e a busca pela fraternidade universal.

Falarei hoje sobre a primeira dessas buscas.

Para os estoicos, dois princípios perfazem o Cosmos: o ativo, que dá forma e individualiza todas as coisas, e o passivo, que dá corpo às coisas existentes. Nossas almas são constituídas pelo princípio ativo, fluindo desde o coração e através de todo o corpo. Corpo e alma se unem de forma total, não há corpo sem alma, não há alma sem corpo nessa realidade que é o ser humano.

Essa alma flui de modo ininterrupto, e diz-se tranquila a aquela que tem bom fluxo, isto é, que flui sem impedimentos e sobressaltos. Para que esse fluxo se mantenha de acordo com a natureza ou sereno, é que preciso que nos guardemos em relação a certas paixões perturbadoras.

Podemos dizer que as paixões são nossa primeira realidade, realidade inquestionável, pois podemos duvidar da existência das coisas que percebemos, mas o mesmo não vale para as paixões. Como seria possível duvidar, por exemplo, que sentimos raiva quando efetivamente sentimos raiva? Como duvidar que estamos apaixonados quando efetivamente estamos? A paixão pode ser equivocada, quer dizer, podemos temer algo que não é temível, podemos nos apaixonar por alguém que não é recíproco. Entretanto, as paixões em si mesmas têm existência inquestionável. Elas existem e ponto final. Elas são tão impactantes e reais para nós que parecem nos dominar, que parece que nada podemos diante delas. 

E, de fato, elas dominam a muitos por sua intensidade. Porém, a realidade delas é, como disse, para nós. As paixões são fatos, são acontecimentos em nossas almas, e não têm qualquer realidade fora de nós. Elas nascem em nós, em nossas almas, e justamente isso nos garante a possibilidade de administrá-las.

Para os estoicos, as paixões podem ser boas ou más. Na acepção física, são boas se perfazem na alma um movimento ordenado e simétrico, e são más se perfazem na alma um movimento desordenado e caótico. 

Paixões e opiniões são faces da mesma moeda. Podemos dizer que opiniões e crenças são a contraface epistêmica das paixões, e as paixões, a contraface psicofísica das crenças e opiniões.  As paixões boas estão associadas a opiniões ou crenças boas (verdadeiras).  As paixões más estão associadas a opiniões ou crenças ruins (falsas). 

A paixão ruim, por sua associação a uma falsa crença sobre a realidade, decorre de uma falta de conhecimento ou, na terminologia estoica, de um vício. A boa paixão, por sua associação a crenças verdadeiras, decorre de uma virtude. 

Por exemplo, se uma pessoa acreditar, ao ver um cão, que ‘há um mal próximo e é preciso evitá-lo’, ela sentirá medo do cão, e seu medo impregnará a imagem do cão à sua frente. Por outro lado, se acreditar, ao ver um sapato caro na vitrine de uma loja e se acreditar que ‘há um bem à vista e é preciso comprá-lo’, irá fazer isso, e seu desejo se misturará à imagem do sapato à sua frente.

Podemos compreender as paixões como ondas no mar. As paixões boas são ondas tranquilas e simétricas, que permitem uma cômoda navegação. As paixões ruins são como ondas tempestuosas, que ameaçam afundar a embarcação. Entretanto, diferentemente das ondas do mar, podemos administrar as paixões, parao que os estoicos recomendam o autoconhecimento. Falemos um pouco sobre alguns aspectos do autoconhecimento. 

É preciso conhecer, primeiro, de quais paixões somos capazes. Entre as ruins, temos fundamentalmente quatro: o desejo irracional, o medo irracional, o prazer irracional e a dor. Entre as boas, temos fundamentalmente três: o desejo racional, o cuidado e o contentamento.

Assim, se você deseja algo que parece um bem, mas na verdade é um mal ou um indiferente, esse desejo é irracional e perturbará sua alma. Se você deseja algo que é realmente um bem, esse desejo é racional e fará bem à sua alma. Se você teme algo que parece um mal, mas na verdade não é, esse medo é irracional e perturbará sua alma. Se você teme algo que é realmente um mal, esse temor, que se traduz em cuidado, é racional e fará bem à sua alma. O prazer será irracional se você senti-lo por desfrutar algo que parece um bem, mas não é, ou por evitar desfrutar algo que parece um mal, mas não é. O sofrimento, entretanto, não tem contrapartida boa, ele é sempre sinal de ignorância. De certa forma, as paixões más se transformam todas em sofrimento. O desejo, o temor e o prazer irracionais todos resultam em sofrimento. 

Assim, fica evidente por qual razão devemos ter uma ideia clara sobre quais coisas são realmente boas para nós ou não, quais coisas são realmente más para nós ou não. Caso contrário, desejaremos coisas que não são boas e evitaremos coisas que não são más, o que trará instabilidade e agitação para nossa alma, da mesma forma que se nos alimentássemos de coisas insalubres e evitássemos os alimentos saudáveis. O resultado seria a indigestão e a nossa aniquilação.

Assim, é preciso que, no processo de autoconhecimento, nos questionemos:

  1. Quais são os nossos medos principais? De quais coisas sentimos mais medo?
  2. Quais são nossos objetos de desejo principais? Quais coisas desejamos mais?

A seguir, devemos refletir sobre essas coisas. São as coisas que desejamos realmente boas por si ou são boas condicionalmente, isto é, se obtidas por um bom meio? Por exemplo, se desejamos a mulher de nosso amigo, devemos buscar realizar esse desejo a todo custo, pondo de lado a amizade? Ou será o desejo sexual condicionalmente bom, isto é, desde que saciado respeitando as relações sociais e as leis? De novo, quanto a coisas que tememos. São elas realmente temíveis por si ou, na verdade, não sabemos como lidar com elas com o devido cuidado?

Assim, as coisas externas não são boas ou más, mas o uso que se faz delas pode ser bom ou mau. Há certamente coisas mais difíceis de enfrentar, como a doença grave de um ente querido, e coisas mais fáceis de vivenciar, como estar na praia em um belo dia de sol. Mas, justamente porque há coisas difíceis, é preciso se preparar para abordá-las da melhor maneira possível. Um bom exemplo disso é trabalhar na emergência de um hospital. Para mim, que não sou médico, seria uma experiência aterradora ver pessoas gravemente feridas. Eu sentiria muito medo e passaria mal. E por que isso aconteceria? Porque não tenho conhecimento de medicina. Ao ver os graves ferimentos, minha alma se agitaria violentamente, e, por isso, eu não poderia também ajudar em nada. O mesmo não ocorre com um médico experiente. Por quê? Porque ele possui o conhecimento certo para lidar com a situação, ele sabe ajudar o paciente e salvar sua vida sem se ver possuído pelas más paixões do medo e da dor, mas sim pela boa paixão do cuidado. 

Há alguns anos, durante o carnaval em Olinda, um moça chegou ao pronto-socorro com um tiro no coração. O socorrista abriu-lhe o peito, identificou e retirou com as próprias mãos a bala no coração, deu os pontos no orifício de entrada e, a seguir, passou a massagear o coração com as mãos. O coração da menina voltou a bater, e sua vida foi salva. E tudo isso ocorreu graças ao seu conhecimento e à sua experiência, com os quais cuidou da moça de forma eficaz e calma.

Assim, é preciso que avaliemos nossa vida sob diversos pontos de vista para que possamos identificar em quais áreas somos mais carentes de conhecimento, para que, suprindo essas lacunas, possamos eliminar as paixões ruins que nos atormentam. E a Natureza nos indica onde estão nossos problemas: estão exatamente lá onde as paixões ruins nos atormentam e nos fazem sofrer. O sinal de nossa ignorância é o nosso grau de sofrimento.

Sabendo agora que as coisas, não importa quão duras ou difíceis sejam, podem ser abordadas da maneira correta, retomemos as questões que colocamos acima e adicionemos outras mais:

  1. De quais coisas você sente mais medo?
  2. Quais são seus objetos de desejo principais?
  3. Em que lugar você é tomada por paixões ruins? No trabalho? Em casa?  Na rua?
  4. Com quais pessoas você se estressa mais? Homens? Mulheres? Jovens? Idosos?
  5. Quais assuntos lhe causam mais medo e apreensão? Notícias políticas? Econômicas? Policiais?
  6. Seu corpo lhe desagrada? 
  7. Características de sua personalidade lhe desagradam?
  8. Você se sente sem valor, indigna de ser amada?

As respostas a essas perguntas vão te indicar quais conhecimentos te faltam para lidar com a realidade de modo harmonioso. Pois, como dissemos, tememos as coisas com as quais não sabemos lidar e, por isso, sofremos. Muitas vezes desejamos coisas que não são realmente boas, e esse desejo nos faz sofrer. Também as paixões ruins, que nos fazem sofrer, surgem porque não sabemos o melhor modo de nos comportar no trabalho, em casa, na rua. Nossas relações com homens, mulheres, jovens ou idosos nos fazem sofrer? É porque nos falta conhecimento para saber lidar com eles. As notícias do mundo nos fazem sofrer? É porque não sabemos como devemos nos posicionar diante do mundo ou o que devemos esperar dele. Se nos sentimos mal em nós mesmos, então nos falta conhecimento essencial sobre quem somos e o que podemos esperar da vida.

Então, de acordo com os estoicos, as paixões ruins se transformam em sofrimento, e o sofrimento é resultado de uma alma agitada e inquieta diante de situações ou coisas com as quais não sabe lidar. 

Como já apontamos, para os estoicos, os princípios ativo e passivo se combinam para dar origem ao Cosmos tal como o conhecemos. Todas as coisas estão, por isso, conectadas, todas fazem parte de um grande sistema. O universo é um grande ser vivo que abriga em si toda a vida, e também toda a morte, que cria todas as coisas e também a todas consome em um perene processo cíclico, do qual fazemos parte.

Por isso, o primeiro passo para que compreendamos o Cosmos e nos harmonizemos com ele é aceitar as coisas como são. Quanto a isso, o estoico grego Epicteto, que viveu há quase dois mil anos, nos diz:

Não desejes que os acontecimentos ocorram como queres, mas deseja que ocorram como ocorrem, e tua vida terá um curso sereno. (Manual, capítulo 8)

O que isso quer dizer? Que é preciso, antes de tudo, aceitar as coisas como são, reconhecer a realidade delas. Reconhecer, primeiro, o caráter efêmero de todas as coisas. Reconhecer, a seguir, a imperfeição de todas as coisas do mundo, incluindo a nossa própria. Por mais que busquemos a sabedoria, jamais seremos totalmente sábios, como bem nos mostrou Sócrates, e como Sêneca enfatiza em seu Da vida feliz:

Eu não sou sábio e (que tua maledicência seja satisfeita) não o serei. Exige de mim,  portanto, não que eu seja igual aos bons, mas unicamente melhor que os maus. Basta-me a cada dia cortar algum de meus vícios e refrear meus desvarios. Sêneca, Da vida Feliz, xvii, 13, tradução de João Teodoro D’Olim Marote (Nova Alexandria)

É preciso aceitar as coisas como são. E isso é difícil muitas vezes. É difícil aceitar que nosso amigo, que amamos, na verdade é dissimulado e está próximo de nós por interesse ou não é recíproco em sua amizade. É difícil aceitar que a pessoa com que nos casamos já não nos ama mais e quer partir. É difícil aceitar que as pessoas com as quais queremos criar uma comunidade não estão realmente interessadas nisso. É difícil aceitar que as pessoas desprezem as coisas que mais amamos, ou não lhes deem qualquer importância.

Para aceitar esses fatos, devemos deixar de lado os juízos morais e tentar entender a situação. Epicteto nos ajuda nisso dividindo as coisas do mundo entre as que dependem de cada um de nós e as que não dependem. A vontade, as opiniões dos outros, os sentimentos dos outros não dependem de nós em absoluto. Podemos, no máximo, através da persuasão, tentar fazê-los se interessar pelas coisas que gostamos, por nossas ideias, mas em última análise a vontade deles está sob o controle deles, não nosso. Como as crianças não se cansam de nos lembrar com a frase Ninguém manda na minha vontade. 

Temos que aceitar certas coisas como são porque não há alternativa, porque não podemos mudá-las mesmo. Suponham que alguém se revolte pelo fato de vai morrer. Para onde ele irá para escapar da morte? Há alguma região do mundo livre da morte? Não. Da mesma forma se uma pessoa que amamos não nos ama mais, mas nos despreze ou nos seja indiferente. O que fazer para mudar seus sentimentos? Não podemos mudar seus sentimentos. Eles são o que são.

Isso significa que cairemos num fatalismo? Que temos que aceitar o falso amigo, o cônjuge indiferente? De forma alguma. Aceitar a realidade, ou cair na real, como dizem, é o primeiro passo para nos livrarmos das paixões ruins e de situações opressoras. Aceitamos que aquele que temos como amigo não o é de fato? Deixemos ele então com sua falsa amizade e vamos em busca de amigos verdadeiros. Aceitamos o fato de que nosso cônjuge não mais nos ama? É hora de tomarmos coragem e buscarmos a separação para que, no futuro, estejamos disponíveis para uma relação melhor. Convivemos com pessoas com as quais não compartilhamos visões essenciais sobre o mundo? Deixemos elas de lado e busquemos pessoas com as quais possamos compartilhar esses ideais. Nosso trabalho não nos realiza? Nossos colegas nos oprimem? Talvez seja a hora de mudar de profissão, mudar de ares, buscar novos horizontes.

Assim, para nos livramos das paixões ruins que desestabilizam nossa alma, temos que mergulhar num processo de autoconhecimento e num processo de reconhecimento do mundo em que vivemos. Só assim, reconhecendo e conhecendo nossa realidade, poderemos modificar nossa atitude diante delas e o mundo à nossa volta.

Aldo Dinucci

Aldo Dinucci

Doutor em filosofia pela PUC/RJ, professor adjunto de filosofia da Universidade Federal de Sergipe e tradutor de obras estoicas como o Enchiridion e as Diatribes de Epicteto.

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